Relevante artigo sobre o recentemente publicado regime jurídico do maior acompanhado:
«O REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
por Cláudia Rodrigues Rocha – Advogada
Setembro de 2018
A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto veio criar o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil.
Este diploma legal introduziu várias alterações no nosso ordenamento jurídico, designadamente, a nível do Código Civil e do Código do Processo Civil, sendo certo que algumas alterações, passam por meras atualizações da terminologia ou adaptações ao novo instituto.
PORQUÊ ESTA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA?
O regime do maior acompanhado visa, sobretudo, dar corpo a vários princípios internacionais, nomeadamente, os elencados na Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e, ainda, a recomendações do Conselho da Europa, uma vez que se tem vindo a defender que o atual quadro legal das “incapacidades” previsto Código Civil não obedecia a essas exigências.
O art. 1.º da Convenção estabelece que o seu objeto é promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Neste sentido, o art. 4.º da Convenção estabelece que os Estados Partes comprometem-se a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência sem qualquer discriminação com base na deficiência, nomeadamente, a adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de outra natureza apropriadas com vista à implementação dos direitos reconhecidos na referida Convenção, bem como a tomar todas as medidas apropriadas, incluindo legislação, para modificar ou revogar as leis, normas, costumes e práticas existentes que constituam discriminação contra pessoas com deficiência.
Assim, tendo em conta os direitos e princípios reconhecidos na Convenção de Nova Iorque, impunha-se uma alteração ao regime jurídico das incapacidades previsto no nosso Código Civil.
Desta forma, o legislador unificou os regimes da interdição e inabilitação e criou e um regime único e flexível, de forma adaptar-se às características de cada caso concreto.
É um regime que visa, sobretudo, ampliar a autonomia e o âmbito da vida privada dos potenciais beneficiários, podendo a sua autonomia vir a ser constrangida nos casos estritamente necessários e apenas na medida do indispensável, ou seja, sempre que as limitações não possam ser ultrapassadas pelo normal acompanhamento e auxílio de qualquer situação familiar.
No fundo, o princípio geral é o de que todos têm capacidade jurídica plena, devendo ser concretamente delimitada a precisa área de incapacidade.
QUEM É CONSIDERADO UM MAIOR ACOMPANHADO?
O art. 138.º do Código Civil (CC) apresenta-nos uma definição de maior acompanhado, consignando que “o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
Como se pode constatar, o legislador evitou quaisquer referências a anomalias psíquicas, surdez – mudez e cegueira.
Por outro lado, introduziu a expressão “por razões de saúde” que, a nosso ver, permite abranger uma panóplia de situações (embora, também seja verdade, que nem todas as incapacidades são fruto de uma situação de doença).
Do mesmo modo, os problemas comportamentais também podem incluir o alcoolismo, toxicodependência e a prodigalidade, bem assim como outros motivos (por exemplo, dependência de videojogos).
No fundo, trata-se de uma definição simples, mas abrangente.
Quanto à decisão de acompanhamento, esta é, inequivocamente, sempre proferida por um Tribunal, após audição obrigatória do visado, nos termos do art. 139.º do CC.
QUEM PODE REQUERER O ACOMPANHAMENTO?
O requerente das medidas de acompanhamento pode ser o próprio beneficiário – estamos aqui perante o primado da vontade do acompanhado (aliás, este regime pretende ser um benefício, e não uma sujeição).
Todavia, o legislador também conferiu legitimidade ativa ao cônjuge, unido de facto ou qualquer parente sucessível, no entanto, apenas mediante autorização do próprio maior e, independentemente de autorização, ao Ministério Público.
Porém, a autorização que deverá ser dada pelo visado poderá gerar algumas dilações na prática, pois situações existirão em que aquele simplesmente não está em condições de dar a sua autorização (ou de compreender a necessidade do acompanhamento), pelo que a necessidade de suprir a autorização poderá atrasar o início da ação.
QUEM DEVERÁ ASSUMIR O CARGO DE REPRESENTANTE? QUAIS OS SEUS DEVERES E DIREITOS?
A lei confere ao futuro acompanhado a escolha do acompanhante, no entanto, tal escolha está sujeita a confirmação pelo Tribunal, conforme decorre do disposto no n.º 1 do art. 143.º do CC.
O n.º 3 deste artigo também prevê a possibilidade de o acompanhado ter vários acompanhantes, no entanto, tal hipótese poderá, na prática, originar várias dificuldades e inconvenientes, nomeadamente para o próprio beneficiário.
O art. 144.º do CC prevê a escusa e exoneração, sendo que, segundo o seu n.º 1, o cônjuge, descendentes e ascendentes não podem escusar-se ou ser exonerados.
Trata-se, assim, de um cargo obrigatório.
Todavia, o n.º 2 prevê a possibilidade de os descendentes – e apenas estes – poderem ser exonerados a seu pedido, ao fim de cinco anos, se existirem outros descendentes igualmente idóneos.
O n.º 1 do art. 146.º consigna o cuidado e diligência de um bonus pater familiae, no entanto, o n.º 2 prevê a obrigação de o acompanhante visitar o acompanhado, no mínimo, com uma periodicidade mensal.
Ora, se o acompanhado e acompanhante viverem juntos, esta periodicidade mínima não levantará, em princípio, dificuldades práticas.
No entanto, certamente existirão situações em que acompanhado e acompanhante não vivem juntos, podendo, eventualmente, estarem separados por vários quilómetros de distância.
Por outro lado, a norma também não prevê a possibilidade de existem vários acompanhantes (o que é permitido ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 143.º do CC).
Pelo que, face à atual redação da norma, poderão surgir várias dificuldades na prática.
QUAL O ÂMBITO DESTE ACOMPANHAMENTO?
Desde logo, o n.º 1 do art. 145.º do CC consigna o princípio que norteia todo o regime do acompanhamento, ou seja, a proporcionalidade, de tal forma que o acompanhamento deverá limitar-se ao estritamente necessário e ter em consideração as circunstâncias de cada situação concreta (aliás, é precisamente isso que decorre do n.º 4 do art. 12.º n.º 4 Convenção de Nova Iorque).
O n.º 2 enuncia os vários regimes que o tribunal – valorando, em concreto, cada situação – pode cometer ao acompanhante, nos quais se destacam o regime das responsabilidades parentais, a representação geral ou representação especial e a administração total ou parcial de bens (poderá ter relevância quando está em causa a administração complexa de patrimónios).
Por outro lado, o n.º 3 consigna que os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
Contudo, a norma não define se se trata apenas de atos de disposição onerosa ou gratuita (ou se inclui ambas as hipóteses).
Já o art. 147.º consagra expressamente o exercício dos direitos pessoais, nomeadamente, o direito a casar, procriar, perfilhar, constituir família e até, testar.
No entanto, ainda no âmbito dos direitos pessoais, cumpre mencionar que a al. b) do art. 1601.º do CC exclui a referência à interdição e a inabilitação por anomalia psíquica, cabendo, assim, ao tribunal, no momento em que profere a decisão de acompanhamento, decidir se o beneficiário pode, ou não casar, sem prejuízo de esta decisão vir a ser objeto de revisão (vide art. 155.º do CC).
No que diz respeito ao exercício das responsabilidades parentais, de acordo com a al. b) do art. 1913.º do CC, os maiores acompanhados mantém o direito ao seu exercício, no entanto, em determinados casos, admite-se que, na sentença de acompanhamento, se declare a sua inibição.
Outrossim, quanto à capacidade para testar, os maiores acompanhados só serão incapazes de testar se a sentença de acompanhamento assim o decretar.
No fundo, salvo os casos em que as limitações são, de facto, profundas, este regime permite ao maior levar uma vida totalmente normal, em respeito pela dignidade da vida humana.
O MANDATO COM VISTA A ACOMPANHAMENTO
O art. 156.º do CC prevê a possibilidade de o maior, com vista a futura incapacidade (no caso de doenças invalidantes progressivas, de que é exemplo a doença de Alzheimer), celebrar um mandato para a gestão dos seus interesses.
No entanto, embora, à primeira vista, pareça ser uma solução excelente, na prática, também poderá comportar riscos, por exemplo, no caso de a condição incapacitante do mandante lhe retirar, progressivamente, a vontade, sendo facilmente influenciável por familiares com interesses pouco altruísticos.
Menezes Cordeiro e Pinto Monteiro, no estudo que realizaram sobre o Anteprojeto, apontaram precisamente essa fragilidade, tendo inclusive recomendado que esse mandato passasse pelo crivo do juiz.
De igual modo, o Departamento de Formação, Estudos e Pareceres do SMMP – Grupo de Trabalho Cível recomendou que o mandato tivesse apenas validade quando acompanhado por declaração médica subscrita por 3 médicos distintos a atestarem que o mandante se encontrava na plenitude das suas capacidades mentais no momento em que foi realizado ou que a eventual nomeação de uma segunda pessoa que supervisionasse a atividade do mandatário.
No entanto, a verdade é que a lei não prevê nenhum controlo desse mandato por instâncias jurisdicionais, prevendo apenas o n.º 3 que o tribunal competente pela determinação do acompanhamento possa aproveitar o mandato, no todo ou em parte, podendo também fazer cessar o mandato quando seja razoável presumir que a vontade do mandante seria a de revogar.
COMO SE INICIA O PROCESSO? QUAIS OS TRÂMITES QUE SEGUE?
Os processos de interdição e inabilitação encontravam-se elencados no capítulo dos “Processos Especiais” do Código de Processo Civil, tratando-se de um verdadeiro processo de partes.
O novo instituto vem alterar esse conceito, passando o processo de acompanhamento a ser um processo de jurisdição voluntária, urgente e orientado para a defesa dos interesses do futuro beneficiário.
É, ainda, possível, em qualquer altura do processo, serem requeridas ou decretadas oficiosamente medidas cautelares que, face à situação, se justifiquem.
O processo inicia-se com o requerimento inicial (tendo em consideração que, tal como já dissemos acima, o próprio visado tem legitimidade para requerer o acompanhamento).
Quanto ao tribunal competente, mantém-se a competência dos tribunais cíveis (é curioso assinalar que se chegou a discutir a possibilidade de criação de tribunais especializados – “tribunais de acompanhamento” – o que, como se pode constatar, não teve acolhimento).
Se o requerente não for o próprio futuro beneficiário, este deverá ser citado para apresentar resposta (contudo, a lei não refere qual a forma de citação, mencionado apenas que deverá ser através do meio que, em função das circunstâncias, entender mais eficaz).
Caso não responda ao requerimento inicial, o visado será representado pelo Ministério Público, nos termos do art. 21.º do CPC.
Após esta fase, o juiz analisa os elementos constantes do processo, cabendo-lhe ordenar as diligencias que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos (daqui se conclui que a perícia não é obrigatória, contrariamente ao regime anterior que previa que, quando se tratasse de interdição ou inabilitação que não se fundasse em mera prodigalidade, após os articulados, realizar-se-ia exame pericial).
De todo o modo, o n.º 2 do art. 897.º e o art. 898.º do CPC privilegiam uma audição pessoal e direta do futuro beneficiário, permitindo, assim, ao juiz averiguar a situação deste através de um contacto direito e, em consciência, ajuizar das medidas mais adequadas ao caso concreto (no regime anterior, de acordo com o art. 896.º do CPC, o interrogatório era apenas obrigatório se tivesse havido contestação).
Reunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento que, ao caso, couberem.
Da decisão que decreta as medidas de acompanhamento cabe recurso de apelação, tendo legitimidade o próprio visado, o requerente e, como assistente, o acompanhante, no entanto, esta norma não inclui o Ministério Público, pelo que, à partida, parece não ter legitimidade para recorrer (tal exclusão poderá tratar-se de um mero esquecimento por parte do legislador ou algo intencional).
Por último, no que diz respeito a custas processuais, acrescentou-se a alínea h) ao n.º 2 do art. 4.º do Regulamento das Custas Processuais, de tal forma que os maiores acompanhados ou respetivos acompanhantes, nos processos de instauração, revisão e levantamento de acompanhamento, estão isentos de custas.
CONCLUSÃO
O novo regime que institui a figura do “maior acompanhado” opta por um modelo monista, caracterizado por uma ampla flexibilidade e supletividade.
É um regime que visa dar corpo aos direitos e princípios ínsitos, sobretudo, na Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assegurando-se o respeito pela autonomia e independência individual, em respeito ao princípio da dignidade humana, devendo tal individualidade ser apenas restringida na medida do estritamente necessário.
Nesse sentido, permite-se ao juiz decretar as medidas de acompanhamento particularizadas para cada situação concreta, privilegiando-se um contacto direito e pessoal com o visado.
No entanto, embora algumas alterações sejam de louvar, também existem determinadas medidas que poderão enfrentar algumas dificuldades na sua execução prática, cabendo, assim, aos intervenientes, nomeadamente, aos Tribunais, mas não só, adotar e aplicar as medidas que melhor se adequam ao caso concreto, tendo sempre em vista a autonomia e o respetivo pela individualidade dos visados.
NOTAS DA AUTORA:
O presente artigo não dispensa a consulta do texto integral da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, o Código Civil e demais legislação conexa, bem assim como a consulta de um profissional da área.
As informações aqui contidas não têm carácter vinculativo nem têm em consideração as circunstâncias de cada caso concreto, constituindo apenas e tão só meras reflexões elaboradas pela Autora.
Este estudo é apresentado de forma despretensiosa, pelo que a Autora, desde já, ressalva e respeita a existência de opiniões diversas sobre o assunto em estudo.»