«I – Tendo o Tribunal Constitucional decidido recentemente, em plenário, não declarar a inconstitucionalidade das normas incriminatórias da morte e maus tratos de animal de companhia, contidas no artigo 387º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, e no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, com fundamento na violação dos art.ºs 18º, nº 2, 27º e 29.º, n.º 1, da CRP, justifica-se que no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade daquelas mesmas normas se atenda ao sentido de uma tal decisão, na medida em que não sobrevenham outras razões ou fundamentos que pudessem servir a possibilidade de pôr em causa a orientação ali adotada e assim também a segurança jurídica e a igualdade de tratamento que por via dela se procurou alcançar;
II – Resulta da norma do art.º 389º, nº 1, do CP que animal de companhia é não só aquele que é detido por seres humanos no seu lar para seu entretenimento e companhia, mas também os que a tal estejam destinados por natureza, como acontece com os animais das espécies sujeitas a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia, criado pelo DL nº 82/2019, cujo art.º 4º, nº 1, remete para a parte A do Anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, cujos artigos 3º, al. b), e 4º, nº 11, definem como animais de companhia os das espécies listadas no Anexo I, ou seja, entre outros, e em lugar de topo os Cães, eloquentemente aí mencionados entre parêntesis com a expressão latina Canis lupus familiaris.
III – Ao detentor de um canídeo, com o sentido que a uma tal detenção é dado pelas disposições conjugadas dos art.ºs 3º, al. a), do DL nº 82/2019, de 27 de junho e 1253.º do Código Civil, seja porque exerça o poder de facto sobre o animal sem intenção de agir como beneficiário do direito, ou simplesmente se aproveite da tolerância do titular do direito, ou porque é representante ou mandatário do possuidor, assim como, de um modo geral, porque o possui em nome de outrem, incumbe o dever jurídico de atuar, prestando os cuidados necessários à alimentação, abeberamento, acomodamento, cuidados médico-veterinários e outros necessários e adequados a evitar o sofrimento do animal ou a sua morte.
IV – Comete o crime de morte e maus-tratos de animal de companhia, previsto no art.º 387º do CP, por omissão, o mero possuidor de um canídeo que não o alimentou convenientemente, nem lhe prestou cuidados de higiene ou propiciou a assistência clínica de que o animal necessitava, deixando-o deliberadamente acorrentado no logradouro da sua casa, numa casota tipo gaiola, na qual o animal não conseguia sequer manter-se de pé, vindo o mesmo a adoecer, e não obstante a terapêutica que lhe foi administrada, dado não apresentar quaisquer sinais de recuperação, acabou por ter de ser eutanasiado.»
Acórdão integral do Tribunal da Relação do Porto de 08.05.2024