Por Cláudia Rodrigues Rocha – Advogada
O Tribunal Constitucional, através do Ac. n.º 298/2019, julgou inconstitucional a interpretação legal de que os documentos fiscalmente relevantes, obtidos ao abrigo do dever de cooperação, durante uma Inspeção Tributária, podem ser utilizados como prova no âmbito de um processo criminal pela prática de crime fiscal, sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente.
No essencial, o que está em causa é uma Inspeção Tributária realizada a um contribuinte, já no decurso de um processo penal pela prática de um crime fiscal, na qual foi recolhida prova que visava a comprovação da responsabilidade criminal do visado.
Tal prova, porque obtida ao abrigo do dever de colaboração que caracteriza a relação fiscal entre contribuinte e Administração Tributária, não ficou sujeita ao crivo de uma autoridade judiciária, não sendo também invocável o princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Ora, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, consagrado no n.º 1 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, diz-nos que o arguido tem, não só o direito ao silêncio, como a não contribuir para a sua condenação (evitando-se, portanto, que o arguido se transforme, ele próprio, em meio de prova).
Tal princípio implica, por exemplo, que o arguido se possa recusar a prestar informações ou entregar documentos.
Sucede, porém, que na relação entre a Administração Tributária e o contribuinte e, em especial, no âmbito de uma Inspeção Tributária, vigora o dever de colaboração (vide n.º 2 do art. 48.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário), segundo o qual é exigível ao visado a prestação de informações e disponibilização de documentos, sob pena de incorrer em responsabilidade contraordenacional ou penal.
De facto, trata-se de uma situação um tanto perversa, pois o contribuinte, por um lado, se se recusar a colaborar com a Administração Fiscal, incorre em responsabilidade penal ou contraordenacional, mas por outro lado, se aceitar colaborar, poderá fornecer elementos de prova que podem vir a sustentar uma acusação por crime fiscal contra ele.
Nas palavras do Tribunal Constitucional, estamos perante dois procedimentos (o de Inspeção Tributária e o de Processo Penal) regidos por princípios de “sinal contrário” pois, por um lado, temos o princípio/dever de cooperação e, por outro lado, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Será constitucionalmente válida uma restrição ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare com fundamento no dever de cooperação?
O Tribunal referiu que ao utilizar no processo penal documentos obtidos coativamente pela Administração Fiscal, no quadro de uma inspeção tributária, estando paralelamente a correr um processo penal, e que não poderiam ser obtidos do mesmo modo através deste último, estar-se-à a transformar a colaboração do contribuinte num meio de obtenção de prova contra si próprio.
O Tribunal referiu, ainda, que se trata de uma atuação objetivamente enganosa, porque camuflada, por parte da Administração, e que leva o contribuinte a pensar que fornece tais documentos estritamente para os fins específicos da inspeção.
Acresce que, a pendência de um inquérito criminal implica, no mínimo, a existência de indícios de que um crime fiscal terá sido praticado, pelo que, a subsequente realização de uma inspeção tributária já não é dissociável de tal suspeita e, por conseguinte, terá de ser vista também como uma diligência de investigação criminal.
Por outro lado, a Administração Fiscal não pode desconhecer a pendência de um inquérito criminal contra o contribuinte inspecionado, desde logo, porque entre nós vigora o principio da comunicabilidade, além de que esta instrumentalização do arguido é contrária à boa-fé e constituiu uma deslealdade grave para com o contribuinte, ou seja, um verdadeiro abuso do dever de colaboração.
Com efeito, o Tribunal entendeu que esta restrição ao princípio nemo tenetur mostra-se desproporcionada e, portanto, constitucionalmente ilegítima.
Por fim, de referir que também se colocou a hipótese de este entendimento colidir com o sufragado no Ac. n.º 370/2013, no entanto, naqueles autos a inspeção tributária iniciou-se antes da instauração de um inquérito criminal e os documentos em causa também foram obtidos antes de o contribuinte inspecionado ter sido constituído arguido no processo penal, ao passo que nos presentes autos estava em causa uma inspeção tributária realizada já no decurso do processo-crime.
De todo modo, à semelhança da jurisprudência do Ac. n.º 370/2013, o Tribunal entendeu que, antes de instaurado o inquérito criminal, os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de cooperação podem ser aproveitados para instruir este último, tratando-se de uma restrição legitima do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
NOTAS DA AUTORA:
O presente artigo não dispensa uma leitura atenta e integral do Ac. n.º 298/2019 do Tribunal Constitucional e legislação conexa, nem a consulta de um profissional para obtenção de esclarecimentos adicionais sobre cada caso concreto.
órdão n.º 298/2019 do Tribunal Constitucional:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190298.html