Comentário a relevante Acórdão de 11.12.2018 por Claúdia Rodrigues Rocha – Advogada
ANÁLISE AO AC. DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 595/2018
O Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
Foi, assim, objeto de apreciação a redação da alínea e) do n.º 1 do art. 400.º do CP que determina a irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.
Em causa, estavam situações em que o arguido era condenado, pela primeira vez, pela relação (tendo sido absolvido pela 1.ª instância), em pena nao privativa de liberdade ou pena de prisão nao superior a 5 anos.
Tem-se vindo a defender que esta limitação visa assegurar a celeridade processual e a eficiência da administração da justiça penal, nomeadamente, através da racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, cuja intervenção se considera que deverá ser limitada aos casos de maior merecimento penal.
No entanto, também há quem defenda que, por vezes, esta compressão, colide com o as garantias de defesa do arguido, mormente, o direito ao recurso.
Na verdade, há já algum tempo que se discutia a constitucionalidade desta norma, tendo o Tribunal Constitucional pronunciado-se anteriormente pela sua inconstitucionalidade, nos Acórdãos n.º 412/2015 e n.º 429/2016.
Neste contexto, este último acórdão já se tinha pronunciando no sentido de que o direito de defesa do arguido face a uma condenação em pena de prisão efetiva, na 2.ª instância, não se encontra suficientemente protegido pela norma em análise.
Assim, ao permitir a imediata execução da pena de prisão em que foi condenado, sem que elementos decisivos da condenação que o priva da liberdade possam ser sindicados, deixando-os à margem de qualquer impugnação ou mesmo contraditório, a norma em apreciação representa uma concretização insuficiente das garantias de defesa do arguido consubstanciadas no direito ao recurso, configurando uma «ablação total» daquele direito do arguido, em violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, por não lhe permitir sindicar a condenação proferida na Relação, depois de lhe ser compreensivelmente vedado, desde logo por falta de interesse ou legitimidade, recorrer da decisão de primeira instância.
O Tribunal Constitucional, à semelhança do que sucede nas anteriores decisões, chama à colação o n.º 1 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Dispõe aquele preceito que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Note-se que a nossa Lei Fundamental apenas se refere ao recurso.
Este pormenor assume particular importância no caso em apreço, pois algumas decisões judiciais afirmavam que o n.º 1 do art. 32.º do CRP pressuponha um duplo grau de jurisdição.
No entanto, tal entendimento não era partilhado por diversos profissionais da área.
Na verdade, esta nova decisão realça que “(…) cabe ainda salientar que a garantia do direito ao recurso não deve ser confundida com a garantia de um duplo grau de jurisdição”.
Tratam-se de conceitos autónomos, que não devem ser confundíveis.
Por direito ao recurso, entende-se a faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável, e com a qual discorda, com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá de encontro às suas expectativas.
Por seu lado, o duplo grau de jurisdição relaciona-se com a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este.
Ora, quando a nossa Constituição consagra expressamente o direito de recurso em processo penal, nada refere, todavia, sobre os graus de jurisdição exigíveis para concretizar o direito ao recurso.
A garantia de defesa constitucionalmente prevista é, assim, autónoma em relação aos graus de recurso.
“Assim, apesar da forte ligação entre ambos os conceitos, esta «não significa que baste o duplo grau de jurisdição para se considerar sempre assegurado o direito ao recurso. Sendo conceitos interligados, eles não devem, porém, ser confundidos, sob pena de diluição do valor próprio e autónomo que a Constituição reconhece, no artigo 32.º, n.º 1, ao direito ao recurso no contexto das garantias de defesa»”, refere este acórdão, citando a jurisprudência do Acórdão n.º 429/2016.
Com efeito, a distinção entre as duas figuras permite afirmar que a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na existência de duplo grau de jurisdição, embora existam situações em que a garantia de duplo grau de jurisdição concretiza o direito de recurso.
No entanto, nestes casos, é necessário que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto se apresente como tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
Além disso, embora seja aceitável que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, é necessário que tal limitação não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, além de que tal restrição deverá ter um fundamento razoável, e não arbitrário ou desproporcionado.
O Tribunal conclui, assim, que se o direito ao recurso pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, pode não se bastar com ele.
Por outro lado, ao permitir-se a imediata execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, sem que elementos decisivos da condenação que o priva da liberdade possam ser sindicados, não está a ser garantido o seu direito de defesa, primordialmente, o direito ao recurso, assistindo-se a uma violação do n.º 1 do art- 32.º do CRP, uma vez que lhe é completamente vedada a possibilidade de reagir contra a condenação proferida na Relação.
Ou seja, a absolvição em primeira instância, seguida de uma condição em pena de prisão no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta nova.
Conforme referiu o douto Tribunal Constitucional “O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma”.
Pelo que, “aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efetiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo”.
Com efeito, ainda que não se atribua ao recurso uma proteção absoluta, negar ao arguido a possibilidade de se defender desta (nova) decisão, afetaria gravemente as suas garantias de defesa, de tal forma que seria exigível um contrapeso valorativo, ou seja, uma justificação de interesse público de relevo equivalente.
O Tribunal Constitucional entendeu, assim, que esta compressão do direito ao recurso é de tal forma gravosa que nao encontra fundamento suficiente no propósito (em si legítimo) de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, de forma sucinta, foi com base no exposto (sem prejuízo de uma leitura atenta e integral do acórdão sob análise) que o Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.
NOTAS DA AUTORA:
O presente artigo não dispensa uma leitura atenta e integral do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, nem a consulta de um profissional para obtenção de esclarecimentos adicionais sobre cada caso concreto.